“Transparece-me no fim que a razão é a coisa mais bem distribuída do mundo. Se a razão se esgotasse com palavras já não havia palavras, só haveria timbres. E os sons não se gastam porque não precisam de ter motivo para se ouvirem. No som que transparece, afinal, nem parece que é tom, porque não se recorda. E, no entanto, sabemos que ele existe e que se reproduz todos os instantes. Ao sol ou à lua, a luz do som aparece por trás das cortinas dos cinco sentidos. E alimenta-se de nós à medida que o consumimos, com e sem qualquer ritmo. Alucinante é pensar sem razão, dando justificação à nota e ao compasso. É quando a transparência nos ensombra a memória da escuta já gasta de vento. E nos faz estalar o tímpano da razão. Aos gritos e aos berros o som já não transparece nem tem razões de existir. Matamo-lo aos tiros, às bombas, aos canhões e à metralha infernal e ruidosa. Caímos-lhe em cima esmagando a glória com os calcanhares e a ponta afiada. E o som morre sem piedade, sem memória, e, aparentemente sem razão. O mundo fica então em silêncio, sem ninguém que possa ouvir o resultado, porque já não há resultado. Transparece-me no fim que a razão é a coisa mais bem distribuída do mundo. Mesmo quando já não há mundo nem razão. É por isso que a transparência existe para nos dar o mundo. E só perdemos metade da razão.”
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